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A transmissão sexual do virus Zika

O ano de 2015 marcou tristemente o Brasil: foi o período quando se identificou os primeiros casos de transmissão autóctone do vírus Zika no país, além de também ter sido identificado o primeiro surto de casos de bebês nascendo com malformação cefálica associado a esta infecção, chamada tecnicamente de Síndrome da Malformação Congênita associada ao vírus Zika (popularmente conhecida como microcefalia).

Se não foi uma grande surpresa o início da circulação deste vírus no maior país tropical do mundo – e que possui histórico de transmissão por outros vírus transmitidos por mosquitos, já que neste mesmo ano de 2015 foram notificados mais de 2.000.000 de casos de dengue, doença que circula no Brasil há mais de 40 anos, se considerarmos as epidemias iniciadas na década de 1980 – a Síndrome da Malformação Congênita associada realmente pegou todos desprevenidos, principalmente devido à falta de informação precedente, já que em outros países onde o vírus circulava não havia registros de aumento de casos de microcefalia, pelo menos até o ano de 2015.

O vírus Zika, assim como o vírus Chikungunya, o vírus da dengue (que possui quatro sorotipos distintos), o vírus da febre amarela, entre outros, são os chamados grupos dos Arbovírus, acrônimo para o termo inglês Arthopod Borne Virus, que em português significa vírus transmitidos por artrópodes: no caso destes vírus, mais especificamente transmitido por mosquitos do gênero Aedes, com destaque especial a grande espécie vetora urbana e cosmopolita, o Aedes aegypti.

Quando se estuda uma doença transmitida por vetores biológicos como mosquitos, pulgas, ratos, carrapatos, caramujos e outros animais, os profissionais da saúde envolvidos devem saber - além dos aspectos clínicos da enfermidade (normalmente abordados pela classe médica, enfermeiros e terapeutas) – sobre a biologia e a ecologia destes transmissores, já que as características da espécie de vetor e seu respectivo ciclo de vida é que irão definir os padrões epidemiológicos, assim como a distribuição da doença.

Posto isso, devemos saber que a natureza é bastante poderosa, como diz a personagem fictícia do livro e do filme Jurassic Park, o matemático e teórico do caos Ian Malcolm: “a natureza acha um jeito”; por isso não é de se estranhar quando foram registrados os primeiros casos da transmissão do vírus por via sexual.

Um estudo de revisão* (ou seja, um estudo que condensa as informações de um agrupamento de outros estudos) a respeito dos meios de transmissão do vírus Zika feito pela Universidade de Heidelberg, Alemanha, no ano de 2018, identificou 18 pesquisas que reportaram infeção do vírus pela via sexual: até à data havia 15 estudos registrando transmissão do homem para mulher, 1 identificando da mulher para o homem, 1 identificando homem para homem e 1 sem resultado conclusivo, sendo que todos os que transmitiram o vírus estiveram em países onde ocorre a doença por vias convencionais (picadas de mosquitos Aedes, estes países chamados endêmicos à doença em questão).

Este trabalho também trouxe alguns dados quantitativos interessantes: a distribuição do tipo de atividade sexual associada a transmissão do vírus Zika foi 96,2% relacionada a intercurso vaginal, 18,5% oral e 7,4% anal, indicando que o vírus pode concentrar sua carga tanto no esperma como nas secreções vaginais, além de ter alguma capacidade de ser transmitido pela via oral.

Isso realmente alterou o que muitos epidemiologistas entendiam a respeito da biologia dos arbovírus, já que se um agente infeccioso tem a capacidade de encontrar outras vias para se multiplicar, a atenção da vigilância para ele deve ser muito mais elaborada, não ficando restrita apenas aos protocolos de doenças transmitidas por mosquitos ou doenças sexualmente transmissíveis: é necessário novas abordagens multidisciplinares e interdisciplinares, as quais buscam informações mais detalhadas do indivíduo e do ambiente.

Também vale lembrar que este vírus, assim como outros agentes infecciosos (tanto do grupo das IST’s como das doenças transmitidas por mosquitos), também pode ser transmitido por transfusão de sangue e, claro, da mãe para o feto em desenvolvimento, todavia a transmissão pelo leite materno ainda se mantém inconclusiva.

E apesar de não ter refletido uma virulência elevada quando comparado com outras IST’s (ou seja: essa via não se mostrou muito eficiente para propagar o vírus igual à via dos mosquitos), isso não é motivo para deixar a doença sem vigilância específica, já que alguns fatores devem ser considerados: primeiro que o número de assintomáticos é alto quando se fala de arbovíroses transmitidas por mosquitos Aedes (ou seja: muitas pessoas que são infectadas e carregam o vírus muitas vezes não manifestam sintomas clínicos, podendo ser até mais de 50% de uma população, o que dificulta bastante o controle da doença com estes reservatórios do agente infeccioso que não são alcançados pelo sistema de saúde); segundo porque os vírus mudam o seu genoma a partir de taxas de mutações, muito mais rápido do que outros seres orgânicos, podendo assim surgir uma variante mais virulenta, mais nociva, e que pode causar mais danos à saúde dos indivíduos e da população.

O simples fato de o vírus Zika encontrar esse novo meio de propagação já é um motivo para deixar os especialistas em estado de atenção, demandando tanto novas estratégias de controle e erradicação, como novas abordagens de assistência e aconselhamento à população vulnerável.

*Zika transmission patterns: a meta-review. Runge-Ranzinger S, Morrison AC, Manrique-Saide P, Horstick O. Trop Med Int Health. 2019 Feb 16. doi: 10.1111/tmi.13216 [Epub ahead of print]